sábado, 19 de março de 2011

Estamira no país das maravilhas



     O dia amanhece no horizonte, já surgem os primeiros raios de sol, uma mulher aparentemente de meia idade surge em passos lentos, para sua rotina diária de trabalho, essa poderia ser a história de milhões de brasileiros que saem de suas casas todos os dias para irem trabalhar, mas essa mulher que aos poucos vai sendo revelada. Essa mulher é Estamira, mulher de raça, de garra que não é de levar desaforos para casa e sempre fala o que pensa.
    
       
 Em seu trabalho, diário, ela vive de “catar” os restos dos outros, “cata” o que não serve mais o que em algum dia serviu para alguém e que hoje foi dispensado. A mulher de aparência maltratada pelo tempo vive em seu próprio mundo, em seu próprio pais, onde não existem barreiras de tempo nem espaço, onde ela pode se comunicar com as “forças ocultas”.
     
     Para ela o local do seu trabalho é um lugar sagrado, um lugar no qual ela se sente segura, ali naquele local inóspito não tem ninguém para duvidar ou questionar a forma que ela pensa e a forma como ela se expressa, ali era reina absoluta, ali é seu mundo maravilhoso.
       
          Estamira resgata a subjetividade da vida de quem assiste, mostra que ninguém está imune a chegar à beira da loucura. Extremamente emocional o documentário expõe os devaneios de uma senhora que já foi abusada sexualmente diversas vezes, sofreu com marido, passou muitas necessidades após a separação e que, aos poucos acabou perdendo a sua sanidade mental, mas Estamira não deixa de ser consciente e fala coisas que as pessoas não querem ouvir, em meio aos seus pensamentos confusos, lança flashes de sanidade, sobriedade e cultura.
       
       Estamira tenta exteriorizar os conflitos que acontecem em seu mundo interior. O tema do documentário funciona bem, pois além de traçar o perfil dessa interessante mulher, ainda coloca em pauta assuntos como a saúde pública, a vida nos aterros cariocas e a miséria do povo brasileiro. A personagem do filme está viva na vida das pessoas, além de emocionar, gerar risadas e reflexão. Quem passa na rua e vê um mendigo após ver o documentário, pensa: “Esse poderia ser ‘Estamira’, esse poderia ser eu”. Como o diretor Marcos Prado é fotógrafo, as imagens do filme acabam sendo obras de arte, as nuances de cinza no preto e branco foram utilizadas com maestria, mostrando intenção em cada take. Além disso, os ambientes mostrados são chocantes, os closes em insetos no lixo, do “gás carbônico” e do rosto de Estamira são chocantes e transportam o espectador ao ambiente, retratando emoções e as passando através da tela. Quando assiste, o telespectador sente como se estivesse mesmo no lixão, em meio à sujeira, exposto a todo o tipo de coisas.

      A trilha sonora inicialmente é repetitiva em demasia o que acaba “irritando”, porém aos poucos nos acostumamos a ela, percebendo que a repetição é para mostrar que Estamira está presa em um mundo em que dificilmente poderá sair. Provavelmente, ela seguirá todos os dias, até a sua morte da maneira como está. 
O documentário explora bastante os planos abertos, fechados e close up. Aberto para mostrar a realidade do local e contextualizar as personagens ao mundo em que vivem. Já o fechado prioriza as personagens em si, tornado o fundo pouco relevante. Já o plano close up explora todas as rugas, as feições, as caretas e olhares de Estamira, adequando suas falas aos seus trejeitos.

       A cena mais marcante é quando descobre-se o passado de Estamira, principalmente quando o marido a deixou. Antes disso o espectador pensa que a personagem principal é apenas mais uma doida que vemos na rua. A partir do momento que emergimos na história da personagem há uma ruptura de pensamento. Quebramos o préconceito e começamos a nos identificar com Estamira. Mulher, mãe, idosa, pobre e louca. Esta é Estamira. Esta, poderá ser você.